Quer informações do Chapadensenews.com.br pelo celular?
Link de acesso:
https://chat.whatsapp.com/HuKo7OA4N2v7ZKRLzZNA9A
A nova escalada da guerra comercial entre Estados Unidos e China, marcada por tarifas que já ultrapassam os 145%, está redesenhando o tabuleiro global do comércio agrícola — e o Brasil, especialmente Mato Grosso do Sul, surge como um dos maiores beneficiários desse rearranjo. Em um jogo de tensões que afeta profundamente os produtores norte-americanos, o agronegócio e a indústria sul-mato-grossenses se posicionam para ocupar espaços deixados por Washington, consolidando relações com Pequim e reforçando sua presença internacional em plena era de instabilidade geopolítica.
A movimentação não é apenas comercial. Ela toca em pontos sensíveis da política internacional, do poder produtivo e até do equilíbrio democrático, ao colocar em xeque modelos de soberania alimentar e dependência entre superpotências. Como destacou o Financial Times, “a guerra comercial pode ser uma bênção para o agro brasileiro” — uma bênção, é claro, que se ergue sobre os escombros da crise norte-americana.
Mato Grosso do Sul, com sua força no agronegócio e na indústria, está no centro dessa transformação. Com mais de 12 milhões de toneladas de soja colhidas na safra 2023/2024 — e expectativa de ultrapassar os 14 milhões na próxima safra — o estado se consolida como um dos mais atrativos fornecedores para a China, que busca com urgência substituir a soja americana. A Aprosoja-MS aponta que, além de qualidade e regularidade no fornecimento, o estado possui logística consolidada para atender à demanda chinesa em expansão.
Os dados de exportação reforçam essa tendência. Em 2024, a China foi o principal destino das exportações de Mato Grosso do Sul, que somaram US$ 9,5 bilhões. Só a soja em grãos gerou US$ 2,8 bilhões, mesmo com uma queda em relação ao ano anterior. Em contrapartida, a celulose cresceu 77,3% na receita, refletindo a diversificação e robustez da pauta exportadora do estado.
O setor industrial não fica atrás. Segundo a FIEMS, a China respondeu por US$ 4,5 bilhões das exportações industriais em 2024, com destaque para pastas químicas de madeira (32,4%) e carnes bovinas congeladas (6,8%). A receita de exportação para o país asiático atingiu US$ 658,1 milhões apenas entre janeiro e março de 2025, com a indústria representando 60% da receita total de exportação do estado no período — o melhor março da série histórica.
Estados Unidos em alerta
Enquanto o Brasil vê portas se abrirem, os EUA enfrentam o reverso da moeda. A escalada tarifária liderada por Donald Trump — peça-chave na estratégia republicana de reposicionar os EUA no comércio global — começa a sufocar justamente a base eleitoral do ex-presidente: os produtores rurais do Cinturão Agrícola.
A American Soybean Association estima que os agricultores perderam cerca de 10% da fatia de mercado na China, o que levou líderes do setor a pedirem uma pausa urgente nas tarifas e a retomada das negociações com Pequim. “Corremos o risco de impactos imediatos nesta safra, juntamente com repercussões de longo prazo em nossa reputação”, alertou Caleb Ragland, presidente da entidade e produtor no Kentucky.
Segundo a consultoria Terrain, as exportações de soja dos EUA para a China em 2024/25 já caíram 3% e tendem a seguir em declínio. O Brasil, por sua vez, forneceu quase três vezes mais soja que os EUA à China em 2022/23 — um número que se torna ainda mais expressivo diante da estagnação da demanda chinesa e da fidelidade crescente a fornecedores brasileiros.
A crise tem reflexos políticos diretos: estados como Iowa e Louisiana — grandes produtores de soja e redutos republicanos — pressionam o governo Trump por subsídios e acordos que garantam a sobrevivência do setor. No primeiro mandato, Trump já havia destinado US$ 23 bilhões em subsídios agrícolas, e uma nova rodada de ajuda financeira está em negociação, o que revela a profundidade dos danos econômicos e sociais.
Guerra tarifária, poder e alimento
A disputa comercial entre as duas maiores economias do planeta ultrapassa a lógica de mercado. Trata-se de uma guerra por hegemonia, em que os grãos se transformam em armas geopolíticas e o campo em arena de embates entre nacionalismos econômicos e estratégias multilaterais.
Como lembra o filósofo Pierre Rosanvallon, “a democracia não é apenas um regime político, mas também um modo de regular os conflitos sociais”. Quando as tarifas se tornam instrumentos de coerção internacional, minando produtores e redes de abastecimento, há riscos concretos de erosão da estabilidade democrática — nos EUA, mas também em qualquer parte do mundo onde a agricultura é base de subsistência e soberania.
No Brasil, o crescimento do agro no vácuo da crise americana precisa ser acompanhado de responsabilidade ambiental, inclusão social e respeito às normas internacionais. A competitividade brasileira não pode se sustentar apenas em vantagens cambiais ou desvantagens alheias. Como advertiu o economista José Eli da Veiga (USP), “ser potência agrícola não pode ser sinônimo de retrocesso institucional nem de devastação ecológica”.
A oportunidade e o desafio
O novo cenário oferece uma chance histórica ao Brasil: tornar-se protagonista de uma cadeia global mais justa, diversa e sustentável. Mato Grosso do Sul, com sua vocação agroindustrial, está na linha de frente dessa transformação. Mas é fundamental que esse avanço seja guiado não apenas por interesses comerciais, mas por valores que fortaleçam a democracia, os direitos sociais e o equilíbrio planetário.
Numa guerra em que o alimento é munição e o comércio é trincheira, o Brasil precisa decidir se será apenas mais um soldado ou um construtor de pontes.